quinta-feira, novembro 23, 2006

apanho todos os dias o mesmo autocarro, à mesma hora sempre.
(chego lá cansada, mas levo nos olhos o Tejo)
já conheço as caras de quem partilha a mesma viagem. à mesma hora sempre. na mesma paragem sempre. e antes de chegar espero-as com o entusiasmo de quem vê uma cara que lhe faz bem.
(as caras familiares fazem-me bem)
o segurança acabado de sair do turno, barba por fazer, traz sempre A Bola. Senta-se, abre o jornal e quando eu saio já está a dormir - sairá no sítio certo?
a menina-d’óculos-contente entra a seguir e acena alegremente à mãe que a traz e a vigia da paragem. esta menina-d’óculos-contente deve ter um problema qualquer. vê-se que já teria idade para apanhar o autocarro sozinha, mas não deve conseguir. quando nos aproximamos lá está ela, sempre contente, de mão dada com a mãe. entra sempre atabalhoadamente, com uma enorme mochila, um casaco cor-de-rosa (é novo e antes do frio trazia um cinzento), o passe ao pescoço e senta-se, contente, a dizer adeus à mãe que espera na paragem, continuando invisivelmente de mão dada com ela.
(não olho nunca para trás para saber se a mãe vai logo embora)
a senhora de uns óculos enormes entra na seguinte. aqueles óculos já não existem em lugar nenhum. aquelas saias de pregas e aqueles casacos de malha curtos também não.
(isto sou eu a dizer assim, porque se exibem orgulhosamente ainda entre os Fanqueiros e a Madalena)
ali vou eu, ao pé destes e dos outros todos. a adivinhar-lhes as histórias, os empregos, as vontades do dia, o que terão comido de manhã, a música dos headphones.
(gosto tanto de tentar adivinhar as músicas. nunca devo acertar. e acho isso lindo. e continuo a tentar adivinhar todos os dias)
terça-feira, a menina-d’óculos-contente não entrou. não chegou a tempo, pensei. entretive-me com a senhora de óculos grandes (ia caindo...) e a música dos outros.
quarta-feira, a menina-d’óculos-contente não entrou.
hoje a menina-d’óculos-contente não entrou. pensei nela várias vezes esta manhã. penso nela ainda.
espero ansiosamente pelas oito de amanhã. para voltar à música dos outros e tentar agarrar invisivelmente a mão da menina que tem medo de ir sozinha. ela faz parte das minhas manhãs e não quero que lhe aconteça nada que a impeça de andar contente.
(ela não saberá nunca, mas preciso de continuar a vê-la contente. como se chamará a menina-d’óculos-contente?)

3 comentários:

Anónimo disse...

Podes não acreditar - sei que acreditas - estou de lágrimas nos olhos.
Serão azuis, de Tejo?

(anseio que todas as meninas amanheçam contentes)

Anónimo disse...

Só tu para fazer um texto assim :)
Nunca senti isso. Nunca conseguia ir à mm hora dois dias seguidos...
Beijo

Nadinha disse...

Carlita, isto é giro!